SOBRE MARES, INFÂNCIAS, HISTÓRIAS E MAÇÃS
SOBRE MARES, INFÂNCIAS, HISTÓRIAS E MAÇÃS
Nilcéa Jenevain[1]
Tenho lembranças da primeira
vez que conheci o mar. Devia ter por volta de meus oito anos. Fiquei encantada
ao perceber que, realmente, ele tinha a mesma voz que ouvia em uma concha
enorme que meu pai tinha trazido para nós um dia. Sinto até hoje sua textura.
Fechava os olhos e me deixava levar pelo barulho do vento que, em minha
imaginação, acompanhava o mar até o fundo, muito fundo. Sinto também a dor
pontuda debaixo dos pés quando recolhi muitas delas, porém, bem menores, para
levar para casa. Foram minhas companheiras em muitas brincadeiras. Essa viagem
foi inaugural para mim em muitas coisas. O mar com seu azul que até hoje me
encanta e inspira, as conchas, o sorvete. Lembro-me de ter recolhido umas
moedas que não eram minhas, mas de minha mãe, ter ido até o bar, escolhido e
comprado um sorvete com gosto de vitória, misturado com flocos e coração
batendo forte. Ah, as moedas não fariam falta, como também não fariam as
conchinhas roubadas do mar, ele tinha milhões delas. Como não fariam falta as
batatas e laranjas que minha mãe jogava na sacola pendurada no braço enquanto
ajudava o feirante a contá-las quando a acompanhava à feira. Eram montes e
montes!
O cheiro do mar, o gosto do
sorvete indiretamente roubado, o toque do vento e o encantamento com o azul do
mar me atiçando um sexto sentido imaginativo sobre tudo, principalmente sobre o
que deveria estar escondido no mais profundo do oceano, não me contaram da dor
que sentiria na volta, provocada, quem diria, por aquele que brilhou o tempo
todo. Tive queimaduras que me obrigaram a viajar
sozinha ocupando dois bancos do ônibus. Meu pai nos acompanhou na viagem de
volta e na rodoviária comprou para nós, menores, três livros de história que
folheamos comendo um pedaço de maçã. Acho que foi a partir daí, que as histórias que conto, leio ou escuto
têm, para mim, um gosto como o desse fruto tão presente em alguns clássicos da
literatura. Gosto suave, às vezes ácido, mas sempre um gosto bom. Minha relação
com as maçãs nunca foi de muita intimidade. Nas raras vezes em que elas
ocupavam a fruteira, eram sempre compartilhadas em pedaços menores ou maiores,
dependendo de quantas crianças havia no momento. Tenho uma única lembrança de
uma vez ter, sim, uma maçã só para mim, por algum motivo especial. Explorei-a
com dentadas eufóricas, deixando marcas nada alinhadas, mas ricas de sensações
e descobertas. Assim acontece comigo e as histórias. Não há um caminho traçado,
há um caminho construído, às vezes sozinha, às vezes junto às crianças, mas
sempre criativo, imaginativo, sempre um encontro.
Foi em um encontro entre
missionários de diferentes países acontecido no bairro em que até hoje vivo que
muitas vezes me vi à frente das pessoas recontando parábolas que acabava de
ouvir. O convite era feito a quem quisesse participar e para isso eram oferecidos
medalhas, escapulários, terços coloridos. Mas o que me chamava a atenção era a
possibilidade de me expressar através das histórias. Fico pensando no objetivo
do missionário que, com certeza, era bem diferente do embutido na lógica
presente em meu pensamento de criança. Uma lógica que carreguei comigo e
defendo diante das narrativas. Sem moral da história, sem escolarização, sem
intenções de transmitir valores. A lógica da fruição, do encantamento, do
encontro entre pessoas.
Mergulho com caçulas gêmeos
Esse texto me fez viajar pra uma época em que não vivi e querer tomar um sorvete com gosto de vitória, misturado com flocos e coração batendo forte. ❤️ Adorei ler essas memórias de tanto afeto!
ResponderExcluirMuita emoção e sensibilidade! O mar leva o que não queremos e nos devolve bons momentos e boas histórias. ♡
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