BIOGRAFIA E FICÇÃO: HISTÓRIAS DE MINHA AVÓ E DO SURGIMENTO DE UMA CIDADE
BIOGRAFIA E FICÇÃO:
HISTÓRIAS DE MINHA AVÓE DO SURGIMENTO DE UMA
CIDADE
Hiller Soares Santana[1]
O presente texto é
uma “costura” de ficção com outros registros narrados pela própria Emília
Soares Santana a mim, seu neto primogênito.
Nascimento...
O ano era o de 1929. Sete anos após um
acontecimento histórico nas artes do Brasil que foi a Semana de Arte Moderna.
Não!
Esta narrativa “biográfica” não vai tratar das consequências desse
evento cultural após quase uma década de seu feito. Na verdade, este evento
citado nem fora conhecido por Emília. Quem foi essa mulher? Uma artista, uma
dona de casa? Uma pessoa religiosa? Uma mãe amorosa? Uma avó com um encanto de
contar “causos”? Ela foi isso tudo e muito mais.
Começo por seu nascimento. Não se sabe ao
certo se o ano foi mesmo o de 1929, pois, quando ela nasceu na fazenda
Barreiro, na Serra Geral, próxima ao vilarejo de “Surado” (atual Tauape,
distrito de Licínio de Almeida- BA), não havia o hábito de se registrar
crianças, principalmente as que nasciam na roça. Então, como não se pode
precisar sua real data de nascimento, vou me ater a data registrada quando Emília,
já casada, e com idade adulta, tirou seus documentos para viajar com o marido
Antônio para o estado de São Paulo. Na certidão de Registro Civil, Emília
nasceu no dia 05 de maio de 1929.
Aqui faço uma interpretação poética e
imaginada do nascimento dela.
- Ai meu Deus, minha nossa senhora, da
Piedade, que menina é essa que já nasceu e já quer abrir olhos de tão esperta
que é! Disse seu pai José Alves Santana.
- Essa menina, graças a Deus, veio mesmo
foi com muita saúde e vontade danada de mamar. E o que é que esse homem tá
nessa aflição, meu Jesus? Volta a se acalmar que tua filha já nasceu. Tu nem
parece esse carneirão de todo dia, com tua calma natural. Essa menina, nossa
caçula, vai nos dar muitas alegrias”, disse
Adelina Soares Santana, mãe da criança.
Emília nasceu renovando a família ali na
fazenda Barreiro. Ela era filha de agricultores, não tinha riquezas materiais,
mas fartura, naquela família, havia: de comida, de leite de gado, mas
principalmente de amor.
Adolescência e juventude...
A bela menina virou adolescente formosa e
depois, já moça feita, com o primo Antônio, (moço garboso, vaqueiro
esperto e excelente dançador) se casou. O marido era filho de Olavo Soares
Pereira e Maria Antônia.
Emília trabalhou na plantação, ajudando
seus pais, nos teares, fazendo os tecidos para vestir, na cozinha, tornando-se
uma exímia quituteira, além de trabalhar em casas de farinha. O casamento não foi só por amor, como era de
costume na época, foi também uma escolha dos pais do casal. A princípio, Maria
Antônia, mãe do noivo, que era uma senhora pouco afeita a contato com outras
pessoas, não gostou muito de noivado e até causou alguns constrangimentos para
Emília. A sogra era "tida" como uma pessoa com comportamento
psicológico instável, mas esse fato não atrapalhou o casório, aliás, depois de
certo tempo Maria Antônia passou até a “fazer gosto” com a nora, já que
percebeu que Emília era uma moça prendada. Antônio e Emília se casaram no
vilarejo do “Surado”. Como quem casa quer casa, como registra o velho ditado, o
casal foi logo tratando de fazer a sua nova residência. O local escolhido para
morada seria ao lado de uma lagoa no sopé de uma parte da Serra do espinhaço,
cujo nome era Lagoa do Gado Bravo. o mesmo nome da fazenda do pai de Antônio, o
velho Olavo Soares: Havia ali apenas três casas: a dos pais de Antônio e do
parente João Soares, além de uma outra família, os Ferreira”. A vizinhança era
bem pouca, na verdade resumia-se a quatro casas que ficavam em volta da grande
Lagoa cujo nome originava-se da tradição de parada para que o gado, dos
criadores da região, pudesse matar a sede depois dos deslocamentos entre
aquelas pastagens. Os Cavaleiros também paravam para dar água a seus cavalos e
essa história, a mim foi contada, várias vezes pela própria Emília. Da janela
ela via Antônio, seu marido, tocando os bois para Lagoa e como o gado era
criado muito solto, pois as pastagens eram grandes, eles eram por assim dizer,
um gado muito altivo. Era um “gado bravo” com pessoas estranhas que passavam
pela Lagoa. Era um gado valente esse que só se dispunha a obedecer aos seus
“tocadores”, vaqueiros conhecidos.
A vivência no
lugar...
Na Fazenda Gado Bravo não existia carros,
não havia telefone, não existia a luz elétrica, mas em compensação, naquele
local existia uma típica indústria na qual trabalhavam, tanto Antônio e Emília
quantos seus filhos e filhas. Indústria? Será que poderemos assim chamar essa
atividade produtiva? Penso que sim. Ali existia uma casa de farinha onde várias
pessoas, homens, mulheres, além de crianças, trabalhavam produzindo a farinha
para a subsistência dos que moravam naquela localidade.
Emília, sempre falante, contava seus
casos e todos a ouviam com entusiasmo! Ela efetivamente era uma “artista” ainda
que seu conhecimento sobre a artes fosse pouco. A bem da verdade, devia ser
mesmo, quase nenhum.
A chegada do
progresso...
Foi Emília quem primeiro ouvi o barulho
vindo de longe.
-
Você está ouvindo o ronco? Disse Emília à sogra Maria Antônia.
- Deve ser nosso senhor Jesus Cristo
mandando castigar vocês que vivem nessa
vadiagem besta! Eu vou é voltar pro meu canto e rezar para ter uma boa hora, se
assim quiser o nosso pai. Respondeu Maria Antônia (já quase vivendo num mundo
paralelo) enquanto se dirigia para baixo de um pé de goiaba penteando seu
cabelo e arrumando o velho vestido. Antônia não dava conta de que o barulho que
a nora lhe falara era um carro que se aproximava da propriedade. Mas como ela
poderia saber que era um carro se nunca tinha visto um de verdade? Aliás, a
maioria dos que ali moravam, só conhecia os carros de boi.
- Boa tarde! Disse um senhor alto ao
descer do automóvel.
- Nós estamos aqui para fazer a marcação
da estrada de ferro. Somos Engenheiros e esse senhor que nos acompanha é o
amigo Manoel Santana que veio nos mostrando o caminho... Aliás, como foi
difícil chegar até aqui! Nesse momento, Emília, muito curiosa e intrigada com
as visitas, pergunta ao sogro:
– Quem são estes senhores e o que eles
querem? É caso de Justiça ou de morte?
- Se acalme Dona, eu junto com os outros
doutores, como falei, aqui estamos para conhecer o lugar em que breve receberá
o “lastro”, quer dizer, o trem de ferro.
- Mas então quer dizer que o trem de
ferro vai passar mesmo por aqui pela Fazenda Gado Bravo? Então isto não é
“pilhéria”? Indagou Olavo aos visitantes inesperados.
- É a mais pura verdade e como é mesmo seu nome?
- Olavo Soares, respondeu o sogro de
Emília.
- Pois então é com o senhor mesmo que
queremos falar. Tenha certeza, meu senhor, que isso não é uma brincadeira. Eis que é interrompido
pelo colega que o diz, quase que ao pé do ouvido:
- Ele é o homem que devemos conversar.
Voltando-se para o velho senhor à sua
frente, o Engenheiro perguntou:
- Então é o senhor que é o dono das
terras por aqui?
- Não é bem assim, aqui tem os outros
moradores que também são proprietários, respondeu o velho Olavo.
- Está certo. De qualquer maneira, o que
importa é que o progresso está chegando com o trem que passará por aqui.”
Replicou o engenheiro. E completou o raciocínio com a seguinte frase: - O
senhor que é um produtor, terá muita chance de crescer, de ficar rico.
Entretanto, o sogro de Emília pressentia que aquela história de progresso não
só mexeria com suas vidas como também significaria uma transformação no modo de
vida de todos os que moravam no lugar. Contudo, como era tradicionalmente muito
cordial, convidou os visitantes para almoçarem na casa grande e depois fez
companhia para os doutores pelas terras do Gado Bravo. Já era quase noite
quando o ronco do carro sumiu no estreito caminho que dava acesso ao Vilarejo
do Surado.
- “Antoni" o que é que você acha
desse negócio de trem de ferro passando por aqui? perguntou Emília que estava,
visivelmente, animada com a possibilidade de conhecer gente nova, de ver de
perto essas novidades todas. Antônio, por outro lado, não gostou, pois pensava
no que significaria essas mudanças todas, ele que já andara por outros Estados
(Paraná e São Paulo), lugares muito distantes, sabia que o movimento tiraria o
sossego de sua casa na roça.
-
Sei lá Emília, não sei se vai ser uma coisa boa.
- “Antôni", você vai poder até
ganhar dinheiro, os doutores falaram que
vão precisar de gente para trabalhar.
-
Eu já trabalho com meu pai, falou Antônio.
-
Mas não ganha dinheiro, retrucou Emília.
- E quem é que precisa de dinheiro se a
gente já tem comida, se a plantação nas nossas terras logo dará colheita e se
tenho o meu gadinho que não deixa faltar leite para as crianças?
-
Mas melhorar de vida é sempre bom, insistiu Emília.
A partir daquela data o tempo começou a
correr tal qual a locomotiva que passaria por aquela terra muito em breve.
Primeiro vieram os trabalhadores que abriram caminho (ou a picada, como era
chamada) por onde passaria os trilhos, em seguida os dormentes de madeira foram
depositados para fixarem os trilhos e estes vinham dando o acabamento na linha
férrea. Por fim veio o “lastro” que era o trem da "Leste".
Quando o trem chegou, pela primeira vez
Emília confirmou, com um grande susto (essa é uma outra história que merece ser
contada também) as consequências das mudanças que o pacato lugar, tornado um
novo vilarejo, cheio de operários da construção da estrada de ferro,
vivenciaria. O trem chegava e com ele o progresso e as mazelas provenientes
dele.
Apresentei assim um pouco da trajetória da vida dessa mulher que foi uma das primeiras moradoras do que hoje é a cidade de Licínio de Almeida.
Tive o prazer de ouvir essa história narrada pela professora e vereadora Lindineia no ato da votação que tinha por fim homenagear Dona Emília com um espaço na lagoa gado bravo em Licínio de Almeida!
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