Paisagens Interiores
PAISAGENS INTERIORES
Memórias
Leandro Faber[1]
Leandro Faber (foto: arquivo pessoal)
Às vezes parecem paisagens remotas e
remotamente guardadas, lembranças indistintas. Mas isso é tolice, porque a
gente não tem o menor controle sobre elas. Recordações não são o tipo de coisa
que se deixa apagar ou esmaecer, assim, porque se quer. São ruidosas,
distraídas do querer, desavisadas. Basta o cheiro do café, um vento gelado, uma
música tocando no rádio e já estão essas e aquelas paisagens interiores bem
ali, diante de nós. E é mesmo possível vê-las, senti-las, sabê-las. Mas
evitá-las a gente não pode!
Pará, Pernambuco, Minas Gerais, Santa
Catarina e Rio de Janeiro vão se desenhando nesses pequenos mapas da
consciência, eles todos ainda na infância. Do primeiro há pouco para lembrar,
quase nada, no máximo o cheiro do peito materno, cheiro de leite, “dorme nenê”.
Mas de Pernambuco há muito que recordar. Chão de terra, fusca, poeira, jaca
mole, fruta do conde, canavial, fuligem, lancheira amarela, estrada de rodagem,
pátio. Da escola só o lado de fora.
Rainha dos Anjos (Ribeirão-PE) parecia
grande e dava pra brincar de correr, nadar no ribeirão, andar no mato. Pão
tinha não, só de vez em quando. Só lá longe, do outro lado, tinha pão. Só na
casa dos vizinhos tinha pão. Mas a gente tinha cana pra chupar, araçá no mato e
tanajura no vento. Caía do céu! Tinha lata de goiabada vazia pra torrar
castanha e tanajura no quintal. Também tinha milho verde pra colocar na
fogueira no mês de julho, porque dava no terreiro.
Lá embaixo, longe da casa, a gente
fazia horta comunitária e era lá perto que a professora morava. Esse era o lado
de lá do rio e era onde também ficavam o campinho e a estrada que ia pra outros
sítios, que todo mundo ia catar jamelão de vez em quando. Na mesma estrada a
gente uma vez fugiu, eu e Nenê, sem saber pra onde, sem eira nem beira. A mãe
não gostava que a gente sumia, nem se fugia nem se brincava. Lá de cima ela
gritava aflita e a gente subia correndo.
Os melhores dias eram de pegar araçá e
goiaba no mato, quando ia muita gente. Depois se fazia doce lá atrás da casa.
Quando era tempo, chegavam os homens que botavam fogo no canavial imenso que
dava volta na casa e sumia de vista. Nesses dias as noites eram iluminadas e o
chão ficava cheio de carvão. Depois eles cortavam a cana e a gente via lá do
outro lado, onde passava a estrada. Tudo ficava diferente quando cortavam a
cana. Antes era verde e depois perdia a graça.
O moço que vendia livros passava de vez
em quando e também outro que trazia quebra-queixo pra gente querer. Ele subia
devagar a ladeira da frente empurrando aquele carrinho. Mas eu queria mesmo era
os livros que quase nunca podia. Uma vez pôde e nunca mais esqueci! A casa era
grande e a mobília pequena, mas tinha bolinho de chuva e afeto de mãe.
Rainha dos Anjos, década de 1970.
[1] Instagram: @dinho_faber
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